quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

o pragmatismo no cotidiano eclesial

Joseph Ratzinger

Juntamente a essas soluções radicais e ao grande pragmatismo da Teologia da Libertação, existe também o pragmatismo cinza do cotidiano eclesial, em que tudo parece ser correto, mas a fé vai-se consumindo e acaba se afundando na mesquinhez. Penso em dois fenômenos que observo com preocupação. Em primeiro lugar, vai-se impondo, em graus de intensidade variáveis, a tentativa de estender o princípio da maioria à fé e à moral, ou seja, o projeto de “democratizar” decididamente a Igreja.

Essa tentativa se expressa da seguinte maneira: o que não parece evidente à maioria, não se pode impor como obrigatório. Mas, de que maioria se trata? Não haverá amanhã outra, diferente da de hoje? Uma fé que nós mesmos podemos estabelecer não é fé. E não existe nenhuma razão para deixar que uma minoria permita que a sua fé lhe seja prescrita por uma maioria. A fé, e a sua práxis, ou nos vem do Senhor por meio da Igreja e seus ministérios sacramentais ou não existe. Na maioria dos casos, o afastamento da fé acontece por lhes parecer que, se pudesse ser fixada por qualquer instância, a fé equivaleria a uma espécie de programa de partido: quem estivesse com o poder, determinaria o que se deve crer. Por isso, o que interessa hoje é chegar a possuir poder na Igreja. Dito de outra maneira mais lógica e evidente: o que interessa mesmo é não crer.



O outro ponto para o qual quero chamar a atenção diz respeito à liturgia. As diversas fases da reforma litúrgica levaram à opinião de que a liturgia poderia ser mudada à vontade. Se houvesse algo imutável, quando muito seriam as palavras da consagração, tudo o mais podendo ser feito de outro modo. O pensamento que então se segue é lógico: se uma autoridade central pode fazê-lo, por que não a local? E se a instância local pode, porque não a paróquia? Afinal, é ela que deveria se expressar e reencontrar na liturgia. Depois das tendências racionalistas e puritanas dos anos 1970, e também dos 1980, estamos cansados de uma liturgia de palavras e desejamos uma liturgia mais vivencial, que rapidamente se aproxima das tendências da Nova Era: procura-se a embriaguez e o êxtase, não a racionabilis oblatio (o culto divino conforme a razão e o logos), de que fala Paulo e a liturgia romana (Rom 12, 1).

(...) Pede-se vigilância para que não se substitua, furtivamente, o Evangelho por outra coisa diferente daquilo que nos foi entregue pelo Senhor. Pedras em lugar de pão.

Joseph Ratzinger, Fé, Verdade e Tolerância, 2ª Parte, Capítulo I, pp. 122-123

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